sexta-feira, 29 de julho de 2011

Senhora do destino


Ela chegou naquela escola, numa manhã gelada. Um calafrio percorreu todo o seu corpo ao chegar ao portão. Vontade de desistir. Aquela gastura no peito. As grandes árvores frondosas, delicadamente balançavam seus galhos como a dizer: volte para seus afazeres! Vá cuidar da sua casa! Seu tempo já passou. Mas árvores não falam, e se falassem, seria a língua dos anjos. Assim como a bondade que despenca com seus frutos. Assim como a sombra que tantas vezes aliviou seu cansaço. Assim como as flores a enfeitar e amenizar as agruras da velhice. 

A vida até começava a ter graça e, sua neta pediu tanto para ela vir. Agora, ali na soleira da porta, o coração quase saindo pela boca num descompasso maluco enquanto a brisa leve soprava na manhã invernal da sua existência. O rosto um braseiro. Doutor falou de coração grande e de, uma tal de Doença de Chagas. A vida a rolar e tantos degraus a galgar...

Entrou na classe e lá estavam “seus colegas”. Na sua cabeça um turbilhão de pensamentos em redemoinho. Tonteira. Quase arrependida de ter ido. Naquela idade começar a estudar pra quê?  Sentia-se no fim do carretel. Era como entendia sua vida. Quase toda a linha já desenrolada, consumida. Umas vezes, lentamente. Outras vezes, tudo desembestando neste vale de lágrimas.

Entrou de cabeça baixa como era seu costume. A professora pediu a todos que se apresentassem e falassem porque estavam ali. Ela respondeu timidamente, numa voz quase inaudível: foi minha neta quem mandou...

Sentada ficou pensando na sua história. Menininha na olaria, com seus seis anos de idade, subia no forno e ia retirando os adobes para carregar o caminhão. Mais de trezentos! No fim do dia, sua mão era uma bolha só. Voltava satisfeita por ter ajudado o pai. Punha compressa de mastruço e recomeçava tudo no dia seguinte.  Mais tarde, a vida no canavial. Na pausa para o almoço, abrir a marmita, comer o arroz com feijão e ovo. Tudo bem compactado na lata. Fumava seu cigarrinho, que ninguém é de ferro. Um dia, uma sua amiga, revoltada, exausta, desiludida da vida, endoidou e tacou fogo no canavial. Queimou tudo. Chamaram a polícia. Pegaram um moço. Ele vivia dizendo que um dia, iria fazer isso. Coitado, foi preso e confessou. Do seu canto ela sempre calada. Nem coragem, nem força para acusar a amiga. Castigo a pobre já tinha demais. No laranjal, mais lida e muito sol a calejar.

À sombra da laranjeira, conheceu o seu marido. Aos quinze anos , casada de mudança para a Capital. Bom de faca desde os tempos de cortador de cana, ele foi contratado para trabalhar num açougue. Ciúmes que não acabava mais. Nem no portão ela podia ir. Só saía de casa se fosse com ele. Se ele era ruim? Não. Não deixava faltar nada em casa... Sempre trancada e excelente maquininha de fazer nenê.  Até que ficou viúva. Só então pôde sair de casa. Tateando pela vida afora e sempre na companhia das filhas. Aí todas se casaram e se viu sozinha.

Lembranças. Ia comprar Cibalena na farmácia do bairro e voltava sem nada. Ela pedia o remédio e o homem mostrava a prateleira dizendo: Tá lá! Como pegar, se ela não sabia ler! Morrendo vergonha e de dor, voltava pra casa sem a compra.

Uma vida inteira trabalhando e olhando para o chão. Um chão a suportar seu peso e sua humilhação.

A neta lhe ensinou algumas letras. Ali naquele banco de escola estava a sua oportunidade de, ao menos, poder pegar o comprimido no corredor da farmácia. Suas dores de cabeça estavam com os dias contados.  Repetiu bem alto para todos ouvirem: É pela mão da minha neta que eu estou aqui.

Naquela escola de alfabetização de idosos, seu talento brilhou. Aprendeu a ler de carreirinha e até prêmio ganhou. A liberdade de ir e vir ainda lhe causa calafrios. Mas seu coração se aquece ao ler historinhas pra bisneta e também quando consegue entender o letreiro do ônibus, garantindo seu ir e vir. Hoje,senhora do seu destino.

sábado, 23 de julho de 2011

No Jardim da Cidade

 



Caiu. Passou raspando. Foi por um triz. O escarro vindo da janela do ônibus passou a um milímetro do espetinho de carne, o famoso churrasquinho de gato, assando na calçada. Fiquei imaginando que as vezes que acertam.

O Largo Treze de Maio, um misto de mercado persa às avessas. Na travessa, uma sinfonia de sons de todo tipo. Um canto cadenciado e alto se destaca a cada 10 metros: Compro “orodóleuro”. Difícil traduzir o, “compro ouro, dólar e euro”. São moços e moças, com seus coletes-placas amarelos, escrito em preto e vermelho “compro ouro”, a repetir este mantra zilhões de vezes ao dia. Mais a frente, na Praça Floriano Peixoto em meio a tantas pernas que vão e vem, enrolados em seus cobertores sujos, moradores de rua acampados na beira da calçada do Paço Cultural Júlio Guerra, a Casa Amarela. Ao lado, seus fieis cachorros. E um monte de filhotinhos.Uma mais assanhada, se pôs a saltar numa altura absurda para o seu tamanhinho. É a Lokinha, a garota visivelmente drogada, me disse. Uma cachorrinha branca e cinza, alegre e saltitante, ainda sem nenhum encardido na pelagem. Quem resiste?


Na Casa Amarela e no CCM é que acontece o curso de Jardinagem. Lugar onde se aprende o cultivo de plantas, de amizades e onde também se põe a mão na massa. A professora é gente fina, os alunos gente sensível, que sabe que gente também é natureza. Natureza a pedir socorro, como no espaço plantado e sujo que espera por manutenção e limpeza.
 Importante no curso de jardinagem é criar camaradagem com tudo o que é ser vivo. As alunas cuidam e fotografam suas plantas exibindo-as como quem mostra fotos de filhas muito queridas.


O desafio do momento é limpar e podar o espaço plantado em frente ao CCM. Perto do bueiro, um cheiro intenso de urina enquanto os achados surpreendem. Ao final, cordilheiras de sacos pretos lotados de todo tipo de embalagem, bitucas de cigarro, moedinhas de um centavo, uma faca e até cigarro de maconha. Toda sorte de imundície produzida pelas gentes gentis deste solo varonil. Enquanto isso voava mais lixos vindos de ônibus, de carrão, de pedestres e das gentes com e sem instrução. 

Duas horas depois, a força das vassouras, pás e tesoura mostraram a que vieram. Tudo limpo, podado, arrumado e uma cena chama a atenção. O pedinte faminto ganhou um espetinho de carne. Um outro, assalta  o petisco e sai correndo. Surpreso, o roubado exclama: nem bem Deus me dá o saco, vem o cão leva a farinha!


Nota: CCM= Centro de Cidadania da Mulher (em Santo Amaro)
Rua Mário Lopes Leão, nº 240 - Bairro: Santo Amaro.
http://www.youtube.com/watch?v=fMOvxjAWQJo
http://www.insper.edu.br/docentes-e-pesquisa/centro-de-empreendedorismo/sife/equipe-sife-insper/projeto-ccm
Paço Cultural Júlio Guerra – Casa Amarela, Praça Floriano Peixoto, 131 –Santo Amaro
Curso de Jardinagem ministrado pela bióloga Adriana Maciel (ainda há vagas)

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Mulher e cidadania





“Façamos da interrupção um caminho novo/ Da queda um passo de dança/ Do medo uma escada/ Do sonho uma ponte/ Da procura um encontro”-Fernando Sabino



Fazer valer o lugar que a gente ocupa no tempo e nos espaço.  Cair, levantar, reagir, decidir e ir. Ir em frente sem medo de ser feliz. No curso “Mulher:Líder Comunitária”, realizado no CCM Santo Amaro, elas chegam radiantes vindas de pontos distantes. As diversas comunidades guardam tesouros em diversidades fascinantes. Carregam histórias de vida em ação, reação e superação. De subserviência a liderança. Não querem esmolas, nem choro, nem vela e sim oportunidades.

Foto: Elizabeth Barbosa 2011


Uma, conta que quando chegou a São Paulo, trazia toda sua mudança, dentro de uma sacola de supermercado. Que, se hoje fosse se mudar de cidade, seria necessário contratar uma carreta bem grande! Outra, fala que tem casa, bazar e quitanda, obtidos com dez reais. Como? Estava numa de horror. O marido doente e desempregado. Ela, descartada pelo mundo corporativo por conta da pouca instrução e os mais de quarenta anos de idade. Passando por uma sacaria pegou todo seu patrimônio (os dez reais) e, comprou tudo em sacos de linhagem alvejados. Chegando em casa, pintou e bordou. Saiu de casa em casa oferecendo. No fim do dia, esbodegada, tinha vendido todos. Dia seguinte, voltou à sacaria para comprar mais sacos. A proprietária, então lhe disse que precisava de uma pessoa para os serviços domésticos. Era a oportunidade, mais que esperada. De pronto, se candidatou e passou no teste, um trabalho realizado lá e no mesmo dia. Com a carteira assinada mais o fornecimento dos sacos e o trabalho extra em casa, deu entrada num terreno. Começou a construção.  Tijolo com tijolo e um mutirão de amigos. Uma garagem então se fez. Nela, um pequeno bazar nasceu. A venda de panos de prato floresceu.  Montou bazar que o marido foi tocando junto com o tratamento, enquanto isso ela dava um duro danado na faxina. Sempre pintando e bordando na folga. A obrigação da cidadania calcada no sofrimento e mergulhada na ação. Reação na cidade dos negócios. Criou e educou filhos driblando a falta de segurança na periferia da existência.

Encontrar segurança no terreno minado em que vivem, aceitando os mistérios e as incertezas da vida. A fé como instrumento da resistência garantindo a resiliência.  

Mulheres liderando sua vida, sua lida. Dentro de cada uma, está montada uma árvore dos sonhos, carregada dos frutos das realizações. Uma cooperação que depende do modo como as pessoas se organizam e aumentam a conectividade para o mundo social. É como disse Maquiavel, a fortuna sendo mulher, premia os bravos e os ousados.
Por:Suely Aparecida Schraner



Nota: Curso realizado em abril 2011, no Centro de Cidadania da Mulher, por Adriana Maciel. Projeto elaborado por Elizabeth Barbosa.

Boa Dica Sonora

http://aulas-musica-danca.vivastreet.com.br/curso-teatro+santo-amaro/desenvolva-sua-comunicacao-atraves-do-canto-/36160842

sábado, 9 de julho de 2011

LUZES SEM MERCÚRIO

 


                    Por:    Paulo Renato César
http://paulorenatocesar.blogspot.com





                        É possível andar sem artifícios

                        Ficar sóbrio já é tão difícil

                        Vejo as pernas sem pretensão

                         vejo a  morte sem dimensão



                        Fico pasmo com as crianças

                        Sobrevivo só com lembranças

                        De um tempo mais que passado

                        Hoje, amores desfigurados.
                       


                        Um dia foi só fantasia

                        Um dia já fiz melodia

                        Das vozes que ardiam

                        Retrucando a poesia

                        Eu desejo sua cabeça

                        Prá fazer uma canção

                        Não escuto com as orelhas

                        Só falo via coração

                        E percebo que não vejo

                        Mais gaivotas entre as nuvens

                        Não consigo mais notar

                        As vitórias nas derrotas.


                        E ouvindo velhos discos

                        Conversando com pessoas

                        Sinto falta dos meus riscos

                        De uma gente mais à toa

                        Prá que eu possa injetar

                        Nessa sua alma pura

                        Uma dose de palavra

                        Com ternura e loucura.

                       
http://paulorenatocesar.blogspot.com/
 

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Labuta infantil





Menininha na olaria
Seis aninhos na soalheira
Em cima do caminhão
Ajeitando a “tijoleira”
Adobe quente na mão
A vida uma trabalheira

Ajuda o pai e a mãe
Passa o dia veja só
Trabalho de gente grande
Tão cansada que faz dó
De noite depois da lida
A mão uma bolha só

Labuta tanto e então
O pai lhe fala bobeira
Diz que é bom pru'ma menina
Ser também a cozinheira
Quero isso não, paizinho!
Prefiro mais ser oleira

Dorme e sonha que um dia
Virá a fada madrinha
Salva ela desta faina
Lhe traz uma bonequinha
Ri alto, brinca e acorda
Levanta e vai pra cozinha

De volta pra olaria
Vai pensando e vai contente
Sonha ser menina grande
Ser tratada como gente
Ver o dia de findar
As agruras do batente