Era um tempo em que o Cruzeiro transformava-se em Cruzeiro
Novo (NCR$) e eu trabalhava no Hospital 9 de Julho. No fim do dia, pegava o ônibus
no túnel 9 de julho. Apeava na praça Dona Benta, para cursar o 2º ano Clássico,
no Instituto de Educação Prof. Alberto Conte, em Santo Amaro.
O Brasil integrava o mundo via satélite (Embratel) e eu nem
assistia ao Jornal Nacional. Levantava-me num dia e dormia só no outro. Em casa
o pessoal assistia Beto Rockfeller.
No Largo 13, o bonde ainda circulava. O metrô chegava em São
Paulo.
A indústria vivia novo “boom” e bombas explodiam no centro
da cidade. Eu, medrosa que era, sempre em sobressaltos. Coração na goela.
O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu teatro e
acabou com Roda Viva, o espetáculo do Chico Buarque. Artistas foram espancados.
Eu assistia O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Macaca de
auditório, ia aos programas da TV Excelsior e Record. A Tropicália, de Caetano
Veloso e Gilberto Gil, debochava de tudo.
O governo autorizou mais água no leite com preço mais caro:
NCr$ 0,40. Leite que era deixado em vidros nas portas das casas.
No ano 1968, o Brasil recebeu grandes empréstimos. Eu, eu
mais dura do que aquilo do tarado. Os líderes estudantis da UNE, comandavam
passeatas. Vladimir Palmeira discursava no anfiteatro do Alberto Conte. Eu
ouvia. Queria participar das passeatas, mas tinha que trabalhar. Sem tempo de
ser comunista, nem isto nem aquilo. Alienada circunstancial. Num dia de comício, o Diretor chamou a polícia. Eram apenas
20 guardas, postos para correr a pedradas e pauladas. Os jovens, maioria e,
muito, muito atrevidos. Mudar o mundo, nosso sonho mais azul. Era um curso
noturno e quem se atrasava não podia entrar. Nossa classe ficava numa sala no
fundo do terreno. Era a última turma antes de virar Ensino Médio. Quase sempre
atrasada (tudo parado na av. 9 de Julho) pulava o muro para entrar. Visão que
despertava aplausos de quem passava. Chegava ralada e com a meia calça furada. Pulava
também para sair mais cedo e tomar caipirinha no Bekinho ou um cuba libre no
Bar 13 dos Amigos ou um Hi-Fi no Amigo Fritz, na praça Floriano . Eu não
regulava bem.
Decretado o Ato Institucional nº 5, temia-se qualquer aluno novo. Era comum aparecer agente do
DOPS na classe, disfarçado de colega. Tudo era censurado e brincávamos falando:
susseios ao invés de suspeito, vaganádegas ao invés de vagabunda. O
presidente Costa e Silva cassou o mandato dos deputados, fechou o congresso, censurou
a imprensa e as artes. Expediu portaria que determinava a proibição da Frente
Ampla e a apreensão de livros, jornais e outras publicações. Eu já tinha lido
Sexus, Plexus e Nexus, de Henry Miller e Quarup de Antonio Callado. Curtia os filósofos
existencialistas e discutia a aldeia global de Marshall MacLuhan.
Capital estrangeiro investiu aqui US$ 541 milhões e o Banco
Mundial emprestou US$ 1 bilhão para projetos de desenvolvimento e eu sem um puto
de um tostão. Era um país que ia pra frente. No fim da aula, se eu tivesse
algumas moedinhas, parava na pastelaria do Largo 13 e comia um pastel gosmento
de carne (pouca carne moída misturada com muito arroz quirera).
Nesse mesmo ano, Martin Luther King foi assassinado. O
candidato a presidente, senador Robert Kennedy ,também. Jacqueline, a viúva do presidente John (irmão de Robert), casava com o armador
grego Onassis. Nós, no Brasil, no maior
enrosco. Muitas prisões sem explicação. Manifestações de rua eram proibidas. Mais
que três conversando já era conspiração. Diziam que a nova esquerda nasceu da pélvis
ondulante de Elvis Presley. Minha contestação maior era tomar um rebite para
ficar sem dormir e estudar mais.
Em outubro, 1240 estudantes foram presos em Ibiúna (SP) ao
realizarem, clandestinamente, o 30º Congresso da UNE. Neste mês eu completava
18 anos e já tinha assistido filmes e peças proibidos, com minha carteirinha
falsificada. Eu usava mini saia e tinha um cabelão. Maiô era de duas peças com
a parte de cima com bojo. Pintava os olhos com rímel, como os da Cleópatra.
Em novembro, a Rainha Elizabeth, da Inglaterra, chegava ao
Brasil. Eu era rainha do Esporte Clube Estrela do Jardim Mália. Tinha uma coroa
de strass e uma faixa verde, bordada com purpurina. Na caçamba do caminhão, junto
com os jogadores rumo a represa de Guarapiranga. Prestigiar o futebol deles. Definitivamente
eu não regulava bem.
Em 1968 parecia que tudo ia explodir. Pensando bem acho que
os Maias erraram o calendário. Em 1968 eu completei 18 anos e parecia que tinha
100. A sensação era de estar numa turbulência prestes a aterrissar com o trem
de pouso avariado.