sexta-feira, 15 de abril de 2016

De gole em gole



De gole em gole

Véspera de um natal do século XX.
Porque todos viajaram e ela tinha trabalho, restou em casa com seus hormônios anárquicos e os 15 quinze anos que portava alegremente.

A casa ficava nos fundos do boteco do pai. Boca de pinga, diziam.
Naquele dia, ela trabalhara na secretaria de um hospital público.  Largou as seis. Enfiou seu cartão de ponto na fresta. Puxou a alavanca da máquina e, zás!  Bateu o cartão, como se dizia antigamente. 

Rua, para que te quero! Ônibus abarrotado e ela ali espremida como almôndega humana.  As pessoas, coladas num abraço involuntário. Verão ardido suspirando por nuvens arredias. Vento ausente. Bundas anônimas se encostando, presentes. Braços anárquicos em cotoveladas de, “com licença, faz favor”. Chacoalha aqui, encosta acolá. Bom mesmo é estar em casa.

Desce a rampa do terreno em direção a casa.
Abre a porta. Joga a bolsa preta no sofá de plástico vermelho com estrelinhas douradas (muito em moda naquela época). Repara que o tijolo que segura o pé quebrado da poltrona de dois lugares, está fora de lugar. Abaixa e o ajeita melhor para não cair quando sentar. Lembra-se do dia em que os pais do namorado da irmã, gente rica, que chegara de surpresa, (a irmã estava doente) sentaram e, desavisados, caíram de papo pro ar, arrebentando o tijolo. Não bastasse isso, o irmão chegou do trabalho e vendo aquela embalagem retangular, em cima da máquina de costura, pegou e levou pro quarto. É que ele sempre embrulhava a marmita em papel de presente. Pra ninguém desconfiar que “era um marmiteiro”. Sorri ao relembrar da cara das visitas se recuperando do tombo e procurando a caixa de bombons que trouxeram para a doente. Memórias.

Cenas de Natal na televisão.
Enquanto houver a luz há uma estrela… Enquanto houver perfume há uma flor… Enquanto houver carinho há mais amor… E enquanto a paz na terra existir… Natal será Natal… Sempre feliz… Boas festas… Feliz ano novo… Canal 9 vem lhe desejar...
É dia de celebrar. Anima-se. Num átimo dirige-se ao boteco do pai, que estava fechado. Pega uma garrafa de vermute Cinzano. Para acompanhar, uma latinha de quitute de porco. A embalagem era quadrada. Tinha uma pequena chave metálica na lateral, que a gente girava para abrir. Mais banha que carne.
Pronto. A ceia estava pronta.

Vestiu seu ‘baby doll ‘ vermelho e passou batom carmim. Sentou-se com a bandeja no colo, entornou o vermute no copo de vidro americano e deu um gole. Desceu raspando. Comeu mais um pouco e mais um gole. No segundo copo, já descia como água da fonte. A televisão, duplicada. 

De gole em gole, sorvendo a vida na cola da existência.
Muito tempo depois, a pele ainda recendia a vermute.  Aquele cheiro, permaneceu indelevelmente  em sua memória. Vermute nunca mais.




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