quarta-feira, 21 de maio de 2014

Pirotecnia



foto: suely schraner


De norte a sul de leste a oeste, o Brasil é um fogaréu só.

Vai ter copa, não vai ter copa. Só a tocha? Liberdade? Estátuas. Como está fica.

Morreu inocente? Fogo nele. Violência policial? Fogo! Faltou água. Gasolina e fósforo aceso. Morreu bandido? Fogaréu.

Tudo explode. O clima esquenta. A raiva cresce e a sensatez viaja no espaço sideral.

Há tempos as pessoas estão malhando o busão. Muito antes e depois do sábado de aleluia. A cada bairro, a cada esquina um Nero sem Roma e sem história.

Incendeia, incendeia. Nossas estações incandescentes. Inferno de Dante contemporâneo. Pessoas interrompendo a pressa. Cobradores assustados.  A coisa se espalhando, labaredas se arrastando.
Se dá, a gente vai que nem bicho e pagando caro. Acreditar.
Versão moderna do navio negreiro.

Se não dá, desce. Procissão de trabalhadores, suados, cansados, desarmados. 

Facções esquentando ainda mais o clima infernal. Repiques hidrófobos. Comentários homicidas. Bombeiros às avessas. Balas perdidas achando inocentes. 

Fogo e sebo nas canelas.

Procissão humana rumo ao trabalho, à escola, ao doutor. Sem choro nem vela.  A indignação sem glossário nem bom tom. Chispa, chispa.  

Novos destrambelhados. Em jogo fatias do bolo que vale cerca de 6 bilhões/ano. A força da grana que ergue e destrói coisas nem tão belas.


21.05.2014

sexta-feira, 9 de maio de 2014

O quiabo



Por: Suely Aparecida Schraner

Era uma casinha branca com portas e janelas azuis. Tinha um pequeno jardim na frente, adornado com dálias, miosótis e lírios.  Ali morava a avó e sua netinha.  A casa situava-se na Vila Operária, em Goiânia, Goiás.  A sala era simples. Tinha duas janelas. Sempre abertas durante o dia. Havia mais quatro cadeiras de madeira e um oratório.

Ao lado, o quarto com duas camas de solteiro com colchões de palha e outro oratório. A avó, devota de todos os santos, da virgem Maria e do pai eterno, rezava fervorosamente todos os dias.
  
Na cozinha, tinha dois armários de madeira escura e sem portas. As prateleiras eram forradas com papel cor de rosa. Este papel era trocado toda semana. A netinha ajudava a recortar. Tinha flores vazadas e às vezes, alguns furos feitos delicadamente com a tesoura, o que dava impressão de renda.  As panelas ficavam enfileiradas em um jirau. De tão areadas a gente nem precisava de espelho. O chão da casa era de terra batida. Aspergia-se um pouco de água antes de varrer. Vinha aquele cheiro bom de terra molhada em dia de chuva. O fogão era à lenha, como em quase todas as casas.

A netinha ajudava a buscar a lenha e catar gravetos.
A cozinha típica goiana assimilou muito da culinária mineira, por causa da influência dos tropeiros.  Quando a neta acordava, o fogo já ia alto soltando faíscas em minúsculas estrelas. A casa da avó, o seu céu de anil.
O café escoava do coador de flanela, exalando a festa do amanhecer. O leite fervia criando natas grossas, que de tarde, viravam manteiga.

Na hora do almoço a avó matava uma galinha das que viviam soltas no quintal. Depenava, sapecava no fogo, lavava com sabão de pedra. Raspava todo o excesso da pele e temperava. Alho, sal, manjericão, alecrim, açafrão e cebola. Tudo da horta caseira.  Depois, ela preparava uma polenta.

O quintal era cercado por arame sem farpas.  Na cerca, crescia chuchu e quiabo. A avó pedia para a neta ir colher os quiabos mais verdinhos e tenros.  Ela colhia porque era obediente e a avó mandava. O quiabo lhe dava engulho. Antes, a madrinha lhe contara que o quiabo nascia da baba dos bobos.  Eles babavam, a baba caía no chão e pronto: nascia o pé de quiabo. Naqueles rincões do Brasil Central, tinha muito bobo que babava.

Nesse quintal, o forno à lenha varrido, esperava os bolos, biscoitos, petas e pão doce que a avó fazia para vender.
Na casa da avó a infância e a vida passavam com muita leveza.  A pobreza era rica de cheiros, cores, amores e brilho nos olhos.

Agora, sensações emanam transitando em ventos brandos da memória enevoada.

Numa evocação afetiva, a neta cozinha e come quiabo com frango e polenta. O quiabo frito, não tem baba.
08.10.2014

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Poesia é o futuro













Poesia é o futuro
Por mundo mais afinado
Rimando e contando caso
Fica tudo animado
Pra vida ser bem mais leve
E não ficar amuado

II
A leitura é uma viagem
Apura-se o ouvido
Aprende-se o passado
Lendo, se torna sabido
Semeia-se o futuro
E a gente fica atrevido

III
Cleusa Santo é cordelista
Escalou muito degrau
Conta e ensina cordel
Eleva qualquer sarau
Valorizando o presente
Descartando qualquer mau

IV
Juntos no SESC Interlagos
Futuro já é agora
Abaixo qualquer problema
Tristeza que vai embora
O tempo passa depressa
E a saudade é senhora

V
Vou ficando por aqui
Aplaudindo a freguesia
Construindo meu futuro
E tecendo a poesia
E de todo coração
Agradeço a cortesia

domingo, 13 de abril de 2014

Sem noção


foto by suely schraner

I
Uma avó especial
Para mim tudo fazia
Carinho mais cafuné
Que a tudo me aprazia
Cedo no fogão de lenha
Preparava ambrosia
II
Era um doce bem gostoso
Que a gente saboreava
Fazia um café ralinho
E bolo também me dava
De noite um chocolatinho
Que doce sonho eu sonhava
III
Amigas inseparáveis
Avó que eu tanto adorava
Pra lá, pra cá, sempre juntas
Cantava e também rezava
Na procissão, de anjinho
Ela assim me enfeitava
IV
Avó de forno a lenha
Tinha ainda o seu formão
Fazia as hóstias do padre
Com a maior dedicação
Para mim tocava as sobras
Bem antes da comunhão
V
O meu sabor da infância
Assim tão imprevisível
A avozinha tão querida
Pessoa inesquecível
Transformava os meus dias
De maneira indizível
VI
Costurava umas bruxinhas
Bonecas que eu adorava
Comprou-me as panelinhas
Que a priminha cobiçava
Um dia, lá no quintal
Eu a ela “cozinhava”
VII
Peguei cocô de galinha
Misturado com um torrão
Fiz alguns biscoitos lindos
Ofertei de antemão
Para a priminha invejosa
Que comeu na ilusão



VIII
Ao ver aquilo de longe
A “vó” correu na aflição
Menina não faz mais isso
Eu sofro do coração
Agora vai pro castigo
Que coisa mais sem noção.
foto suely schraner
Oficina de cordel - Cleusa Santo


Pouco com Deus é muito


I
Maria Valeriana
Senhora magra e sozinha
Andava de sol a sol
Catando papel, latinha
A velhice ia longe
Dinheiro nem pra farinha

II
Na minha casa ela vinha
Pegar todo jornal velho
Qualquer coisa lhe servia
Até mesmo escaravelho
Na carroça abarrotada
Direto pro ferro-velho

III
Muitas vezes arrastava
Pra mais de oitenta quilos
Andando na maior fé
Abominando vacilos
Coluna prejudicada
Nenhum lugar pra cochilos
IV
Rendeu só onze reais
Toda a tralha carregada
Falei que era muito pouco
E que ela estava “pregada”
Que dor nas costas era grande
E a fome não mitigada
V
“O pouco com Deus é muito
E não reclamo jamais
Se, puxo a carroça agora
Garanto meus dez reais
Dá pra comprar o açúcar
E ainda me sobra mais”

VI
Ela era pobrezinha
Um animal de tração
Na carroça tudo junto
Só valeu pouco tostão
O pouco com Deus é muito
Sua forma de oração

foto by suely schraner

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

É carnaval





A cidade está repleta de alegorias. Liga-se a TV e lá vem o baticum e os rebolados. Cores efusivas. Consta que em finais do século XVIII, o entrudo era a prática por aqui. Macaqueamos os bailes parisienses até mesmo colocando-o sob forte controle policial. Em vão. Não põe corda no meu bloco, nem vem com seu carro forte, nem dá ordem ao pessoal. Foi o que predominou. No bairro não é diferente. Um grito aqui outro acolá. É o carnaval se manifestando.
O bloco Reciclar, no bairro Jardim Suzana, zona Sul de São Paulo começando a festa que precede a maior, aquela do Sambódromo do Anhembi, do arquiteto Oscar Niemeyer. O tema daqui foi “Água, sabendo usar não vai faltar”. As águas vão rolar. Garrafa cheia eu não vi sobrar.

No burburinho de gente, crianças e até o cachorrinho aceitando um carinho. Depois da padaria, uma igreja e casamentos. Misturado à marcha nupcial, ouvia-se o som das caixas, cuícas, pandeiros, surdo e reco-reco. Avenida retumbante.

Muitas latinhas de cerveja para reciclar. Poluição sonora. Um narguilé no centro da mesinha qual arranjo de flores, rodeado de bebidas e instalado na calçada. Mesinha rodeada de jovens sorridentes e dançantes. E viva a diversidade. Não me leve a mal, é carnaval.

Pare cruze com cuidado, dizia a placa. Parei no contraponto. Um jovem a colar, ao ritmo dos surdos  cartazes em todos os postes. Os dizeres: ”Joga-se búzios, cartas e tarôt. Simpatia para o amor. Resultado em 3 dias”. Quanto riso, oh, quanta alegria.

Na igreja ao lado, simpatia e amor. Aqui e agora uma união fashion com direito a Rolls Royce e tudo o mais. Ao largo, passam cavaleiros e amazonas em seus cavalos galopantes. É São Paulo. É Brasil. É bem aqui. Cai a noite quente. É fevereiro.

Por: Suely Aparecida Schraner  
Publicado no site: www.saopaulominhacidade.com.br
 em fevereiro de.2010