quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Dramí







A mãe sempre adorou cães e gatos. Especialmente cães. Eram tantos lá em casa que dava uma certa ojeriza. Como ele apareceu não consigo me lembrar. De origem duvidosa, era o que se chamava, naquela época, de vira-latas. Hoje, mais certo seria fura-saco, já que são raras as latas de lixo nas ruas como antigamente.

Era de um branco rajado de amarelo e tinha um olhar brilhante e atento. Em pouco tempo se destacou. Apesar da origem bastarda - e talvez até por isso mesmo -, era de uma inteligência aguçada. E a lealdade então, essa era fora de série. Se o pai queria bater em algum filho (éramos dez), primeiro tinha que prender o Dramí. Caso contrário, ele esquecia quem era o dono da casa, avançava, mordia, não deixava que maltratassem seus amiguinhos. O pai sequer podia levantar a voz pra nós que ele já rosnava. Às vezes, o pai fingia que ralhava com a criança em seguidas demonstrações para os outros. Todos se admiravam daquele cachorro precursor do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O Dramí cresceu assim. Entrava cachorro, saía cachorro em casa, mas nada se comparava à dedicação dele. Até eu, não podia ficar indiferente.

Naquele 1964, trabalhava de dia e estudava o ginasial à noite. Da casa onde morava até o ponto de ônibus eram cerca de quinze minutos a pé, em rua de terra, com poucas luzes na frente das poucas casas. Percurso perigoso. Todos os dias, invariavelmente, sem que ninguém tivesse ensinado, o Dramí ia comigo até o ponto e, na volta, pra mais de meia-noite, era ele quem estava lá, esperando-me descer do ônibus.

E quantas vezes livrou meu irmão mais novo de surras por brigas na rua, ao ponto em que a molecada sempre dizia: "Você provoca a gente porque o cachorro tá por perto. Vem sem o cachorro pra ver!".

Mas os anos se passaram. O olhar foi ficando sem brilho, embaçado. Havia uma tristeza naquele jeito de ser. Dormindo parecia delirar. Por fim, decidiu-se por uma poltrona da sala. Daquelas de plástico vermelho brilhante, com estrelinhas douradas. Era lá que ele se abancava. Não havia quem fizesse ele descer para a gente se sentar! Até que ninguém ligou mais. Ficou sendo o sofá do Dramí.

Aos poucos foram caindo os dentes, os pêlos. Já não corria mais em defesa dos amigos, agora adultos. Até que um dia amanheceu morto, sentado e meio que dormindo no sofá.


Publicado no www.saopaulominhacidade.com.br
Categoria: Outras histórias
Autor(a): Suely Aparecida Schraner | história publicada em 29/10/2008

Um comentário:

  1. Parabéns bela bela história e pela seu amor a nossos irmãozinhos cães.

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