domingo, 29 de maio de 2016

Vozes

Vozes que estalam. Chicoteiam. 
Vozes como espelho d’água. 
Um silêncio que se rompe. 

A paz que fala mais alto. 
Vaza a música do corpo, retrato da sinfonia. 
Agrupam e comunicam.
Em fila, do bem-querer, invadindo o viver. 
Nossos sons e nossos corpos.
E o verbo se fez homem, carregando estrelas-guias. 

Suely Schraner
X

De paixão e poesia

A paixão tem seus limites? 
Sana? 

A literatura cura? A ciência reconhece?
A poesia tem bons antecedentes? CPF? RG? E passaporte tem? Ela desce os andaimes do futuro?Passa sem salvo-conduto?

Ler não requer juízo. 
Salve-se quem puder.




Certezas?


 Suely Schraner
No reino das palavras são só mistérios. 
Emergem do calabouço, na trilha da agonia. 
Borboletas voejando no universo da loucura.

Na clareira do equívoco, certezas plenas de dúvidas. 
Respirar nas entrelinhas, pasmando na mesma linha.

Em âncora levantada, nas ondas, qualquer destino. 
No timão o escritor, lavrando a sua dor. 
Uma bússola a apontar no horizonte do amor. 

Mais adiante, quiçá mais textos. 
Imenso talvez.




sábado, 21 de maio de 2016

Malus domestica (maçã)

Suely Schraner

           
 Malus domestica (maçã)

Não pertenço a ninguém
Magia mais sedução
Mistério e folhetim
Zero relatividade
Inércia e transgressão
Fruto mais que proibido
Oferta, Deusa do Amor
Fêmea, ovário e natureza
O pecado original
Doce, doce, doce
Tentação, aventura, temor.
Sob a sombra de uma árvore
Fenda-vulva em tronco rijo
Origem de todo mundo
Talho e racha. A partida.
Perseguida.
Céu fechado em ventania
No frio , outono escancara
Na chuva que se anuncia
Todo o mito que carrego
Sete pragas em copas d’árvore
Nesses dias aziagos. Feminino.
Prazeres inesgotáveis. O eixo do universo.


domingo, 15 de maio de 2016

A praça





A solidão das pedras repousa nos ases em mãos carcomidas. Vinte um, buraco ou burro em pé. 
A tarde fria embala o entardecer.

O lixo reveste o piso das britas incompreendidas, pisoteadas, escangalhadas. 
Pedaços de vida no chão. 

Nesse mar de lixo,  centenas de bitucas retorcidas emergem instigando a imaginação.
Quantos lábios afagaram?  Quanta ansiedade serenaram?

Na mesa do carteado, entre rugas e cãs prateadas, dois-de-paus conversam com valetes esnobando o rei de copas.

O vento canta no alto das árvores e os escapamentos cumprem suas pressas tóxicas.

Acontecemos no amarelo outonal do dia que se encerra.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Saudações


Saudações 

Do beijo de Escariodes.  
Da paz do Senhor das guerras. 
Dos cristãos dando-se as mãos, manipulados ou não. 
Do sol de outono a clarear as ideias de jerico. 
Das maritacas arrulhando nos telhados irados pelas lágrimas da chuva. 
Das cores das folhas que cantam sob os pés do mendigo. 
Do papelão que cobre e abraça o corpo enrodilhado como o feto abortado num dia de festa natalina. 
Das frestas que abrem  dos neurônios a boiar em rios de etanol.
Da passividade marginal de um apalpado na blitz policial.
Dos mais aptos que sobreviverão na hecatombe natural.
Dos caçadores de migalhas que garimpam ouro em merda.
Dos que brincam de cabo-de-guerra nas quebradas da cidade, se estalam e requebram nas voltas que o mundo dá.
Dos que encontram as vitórias nas derrotas, das ideias vãs em porões-latrina.





sexta-feira, 15 de abril de 2016

De gole em gole



De gole em gole

Véspera de um natal do século XX.
Porque todos viajaram e ela tinha trabalho, restou em casa com seus hormônios anárquicos e os 15 quinze anos que portava alegremente.

A casa ficava nos fundos do boteco do pai. Boca de pinga, diziam.
Naquele dia, ela trabalhara na secretaria de um hospital público.  Largou as seis. Enfiou seu cartão de ponto na fresta. Puxou a alavanca da máquina e, zás!  Bateu o cartão, como se dizia antigamente. 

Rua, para que te quero! Ônibus abarrotado e ela ali espremida como almôndega humana.  As pessoas, coladas num abraço involuntário. Verão ardido suspirando por nuvens arredias. Vento ausente. Bundas anônimas se encostando, presentes. Braços anárquicos em cotoveladas de, “com licença, faz favor”. Chacoalha aqui, encosta acolá. Bom mesmo é estar em casa.

Desce a rampa do terreno em direção a casa.
Abre a porta. Joga a bolsa preta no sofá de plástico vermelho com estrelinhas douradas (muito em moda naquela época). Repara que o tijolo que segura o pé quebrado da poltrona de dois lugares, está fora de lugar. Abaixa e o ajeita melhor para não cair quando sentar. Lembra-se do dia em que os pais do namorado da irmã, gente rica, que chegara de surpresa, (a irmã estava doente) sentaram e, desavisados, caíram de papo pro ar, arrebentando o tijolo. Não bastasse isso, o irmão chegou do trabalho e vendo aquela embalagem retangular, em cima da máquina de costura, pegou e levou pro quarto. É que ele sempre embrulhava a marmita em papel de presente. Pra ninguém desconfiar que “era um marmiteiro”. Sorri ao relembrar da cara das visitas se recuperando do tombo e procurando a caixa de bombons que trouxeram para a doente. Memórias.

Cenas de Natal na televisão.
Enquanto houver a luz há uma estrela… Enquanto houver perfume há uma flor… Enquanto houver carinho há mais amor… E enquanto a paz na terra existir… Natal será Natal… Sempre feliz… Boas festas… Feliz ano novo… Canal 9 vem lhe desejar...
É dia de celebrar. Anima-se. Num átimo dirige-se ao boteco do pai, que estava fechado. Pega uma garrafa de vermute Cinzano. Para acompanhar, uma latinha de quitute de porco. A embalagem era quadrada. Tinha uma pequena chave metálica na lateral, que a gente girava para abrir. Mais banha que carne.
Pronto. A ceia estava pronta.

Vestiu seu ‘baby doll ‘ vermelho e passou batom carmim. Sentou-se com a bandeja no colo, entornou o vermute no copo de vidro americano e deu um gole. Desceu raspando. Comeu mais um pouco e mais um gole. No segundo copo, já descia como água da fonte. A televisão, duplicada. 

De gole em gole, sorvendo a vida na cola da existência.
Muito tempo depois, a pele ainda recendia a vermute.  Aquele cheiro, permaneceu indelevelmente  em sua memória. Vermute nunca mais.




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