De
gole em gole
Véspera de um natal do
século XX.
Porque todos viajaram e ela
tinha trabalho, restou em casa com seus hormônios anárquicos e os 15 quinze
anos que portava alegremente.
A casa ficava nos fundos do boteco
do pai. Boca de pinga, diziam.
Naquele dia, ela trabalhara
na secretaria de um hospital público. Largou
as seis. Enfiou seu cartão de ponto na fresta. Puxou a alavanca da máquina e,
zás! Bateu o cartão, como se dizia antigamente.
Rua,
para que te quero! Ônibus abarrotado e ela ali espremida como
almôndega humana. As pessoas, coladas
num abraço involuntário. Verão ardido suspirando por nuvens arredias. Vento
ausente. Bundas anônimas se encostando, presentes. Braços anárquicos em cotoveladas
de, “com licença, faz favor”. Chacoalha aqui, encosta acolá. Bom mesmo é estar
em casa.
Desce a rampa do terreno em
direção a casa.
Abre a porta. Joga a bolsa
preta no sofá de plástico vermelho com estrelinhas douradas (muito em moda
naquela época). Repara que o tijolo que segura o pé quebrado da poltrona de
dois lugares, está fora de lugar. Abaixa e o ajeita melhor para não cair quando
sentar. Lembra-se do dia em que os pais do namorado da irmã, gente rica, que
chegara de surpresa, (a irmã estava doente) sentaram e, desavisados, caíram de
papo pro ar, arrebentando o tijolo. Não bastasse isso, o irmão chegou do
trabalho e vendo aquela embalagem retangular, em cima da máquina de costura,
pegou e levou pro quarto. É que ele sempre embrulhava a marmita em papel de
presente. Pra ninguém desconfiar que “era um marmiteiro”. Sorri ao relembrar da
cara das visitas se recuperando do tombo e procurando a caixa de bombons que
trouxeram para a doente. Memórias.
Cenas de Natal na televisão.
“Enquanto houver a luz há uma estrela… Enquanto houver perfume há uma
flor… Enquanto houver carinho há mais amor… E enquanto a paz na terra existir…
Natal será Natal… Sempre feliz… Boas festas… Feliz ano novo… Canal 9 vem lhe desejar...
É dia de celebrar. Anima-se.
Num átimo dirige-se ao boteco do pai, que estava fechado. Pega uma garrafa de
vermute Cinzano. Para acompanhar, uma latinha de quitute de porco. A embalagem
era quadrada. Tinha uma pequena chave metálica na lateral, que a gente girava
para abrir. Mais banha que carne.
Pronto. A ceia estava
pronta.
Vestiu seu ‘baby doll ‘ vermelho e passou batom
carmim. Sentou-se com a bandeja no colo, entornou o vermute no copo de vidro
americano e deu um gole. Desceu raspando. Comeu mais um pouco e mais um gole.
No segundo copo, já descia como água da fonte. A televisão, duplicada.
De gole em gole, sorvendo a
vida na cola da existência.
Muito tempo depois, a pele
ainda recendia a vermute. Aquele cheiro,
permaneceu indelevelmente em sua
memória. Vermute nunca mais.
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