domingo, 10 de maio de 2015

A vida por um fio




suely schraner
visto do alto da janela

O ocaso da existência chegou para o Urso.

Ultimamente, vivia para dormir. Mancava e perdia o apetite. Às vezes, urinava sangue.

Na visita ao veterinário a constatação: um tumor de 8,5cm no pulmão mais outro grandão nos testículos. Na maca, deu a patinha duas vezes sem ninguém pedir. Parecia estar dizendo: estou indo!

Tomou soro, injeção e anti-inflamatório. Bateria de exames que durou um dia inteiro.
Já em casa, meio que voltou da beira da morte. Parecia bem melhor. Reclamava a ração. O desejo de se alimentar era mais forte do que a doença.

Novamente a dificuldade para andar. De noite se batia como em convulsões. De dia, mal saía da casinha para dormitar ao sol. Urinava perna afora. Aqueles olhos cor de mel, só brilhavam ao ver o prato de ração pela manhã, Sabia que depois, iria dar umas voltas, coisa que adorava. Mas as pernas fraquejavam e tinha que voltar carregado. A dor era visível naquele toquinho de rabo. Orelhas quase sempre caídas. Pêlos soltando-se aos tufos, como aquela florzinha que a gente assopra e voa pelos ares. A cabeça cada vez mais em forma de triângulo. Inchaços.

A difícil decisão: prolongar a vida com mais sofrimento ou a eutanásia canina. De cortar o coração. Depois que os filhos se foram, formamos a santíssima trindade. Agora, nosso amigão, que nos amou e cuidou da gente, dormiria para sempre.

Na manhã anterior fui procurá-lo no quintal para dar-lhe uns “bifinhos”, que eu sempre comprava na volta da biblioteca.  Era nosso segredo. Elevou seu olhar mais dócil e seguiu-me até a porta da sala. Depositei o petisco na aba da casinha e ele se regalou. Terminou de mastigar e me olhou profundamente. Parecia triste.

No dia da injeção letal, foi trazido até o meu quarto. O ar estava carregado de lembranças. Nossos diálogos silenciosos na hora do banho de mangueira, as massagens delicadas nos parcos quilos de mansidão e ternura. Gostava desse aconchego e acredito que ele também. Vivenciávamos cada momento.

Por mais de treze anos, ele nos encantou com as diferentes maneiras de latir. Uma modulação diferente para cada emoção. Se alguém estava chegando, se tocavam a campainha, se era o carro do filho encostando. Tudo requeria um esforço diferente para se expressar. Quando voltávamos de um passeio, aí então, a conversa era longa e num ritmo alucinante. Gesticulava usando as patas como se fossem mãos. Só vendo. Lealdade a toda prova.

Olhos rasos d’água, eu disse: “Vai Urso, a gente se encontra qualquer dia, lá onde vivem os mortos”.

O céu continuava inabalável com suas suaves nuvens de outono. Ventos de maio embalavam melancolia. Choveu um pouco e depois estiou. Tudo acaba. Até nós.

Posto para dormir. Anestesiado para sempre. Aqui, eternamente na lembrança.
SP, 06.05.2015

suely schraner
05.05.2015